terça-feira, 26 de junho de 2012

OBLATOS : Entre o Céu e a Terra, Cidadãos do Oitavo Dia (Capítulo 1 de 3)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)   


São Mauro : primeiro discípulo de São Bento e primeiro oblato


Este artigo pertence à palestra do III ENOB ( Encontro Nacional dos Oblatos Seculares da Congregação Beneditina do Brasil ), proferido pela Madre Abadessa Vera Lúcia Parreiras Horta, OSB, monja beneditina do Mosteiro do Salvador em Salvador (BA)(www.mosteirodosalvador.org.br ).
  
O evento, que ocorre a cada quatro anos, teve como tema 'Oblação, oferta a Deus e aos irmãos' e foi realizado de 25 a 30 de outubro de 2011, no Centro de Treinamento de Líderes, na praia de Itapuã.

            'Fenômeno da Igreja de nosso tempo é a participação de leigos na espiritualidade das Ordens e Congregações. Estes leigos ampliam a inspiração original de homens e mulheres de Deus, fundadores das diversas famílias de consagrados. Riqueza, na pobreza hoje experimentada pela diminuição do número de vocações aos mosteiros e congregações históricas, os leigos trazem novo vigor às comunidades às quais estão vinculados. Por outro lado, no contato com as comunidades que os acolhem, aprofundam e alimentam a fé que os ajuda a enfrentar o cotidiano da sociedade pós-moderna secularizada.   


1 – Oblatos em uma mudança de época
É neste contexto atual que Deus fala. Ele sempre fala em termos de presente, no indicativo. Interessante, Johanna Domek OSB, em um de seus estudos sobre as perguntas na RB (1), assinala que a primeira pergunta a nós dirigida na Regra Beneditina é : “E que diz?” (RB Pról. 12). Pouco adiante, Bento pergunta : “Que há de mais doce para nós, caríssimos irmãos, do que esta voz do Senhor a convidar-nos?”(RB Pról. 19). A que nos convida esta voz aqui e agora concretamente? Em que contexto estas perguntas nos encontram, seja a nível pessoal, seja a nível mundial?
A Conferência de Aparecida registrou com força : “Vivemos uma mudança de época e seu nível mais profundo é o cultural. Dissolve-se a concepção integral do ser humano, sua relação com o mundo e com Deus.” (cf. DA 44) (2). Neste mesmo ano de 2007, na alocução à Conferência Monástica Italiana, o Abade de Noci, Donato Ogliari OSB (3), nota a definição dada pelo sociólogo Z. Bauman à sociedade atual, a de ser uma sociedade líquida”, onde tudo se dissolve. Valores e significados mudam velozmente e desajustam contextos de vida até agora bem definidos. Em seu discurso inaugural ao V CELAM, o Santo Padre Bento XVI afirma : “Só quem reconhece a Deus, conhece a realidade e pode responder a ela de modo adequado e realmente humano” (cf. DI 3) (4). E o documento introduz o que será uma constante referência : “por essa razão, os cristãos precisam recomeçar a partir de Cristo, a partir da contemplação de quem os revelou em seu mistério a plenitude do cumprimento da vocação humana e de seus sentido” (cf. DA 41).
Enquanto escrevo esta introdução, uma nova crise econômica mundial aparece no horizonte, sinal da instabilidade em que nos encontramos. Em vários pontos do globo a natureza grita como “em dores de parto”, porque os filhos desta geração a exploram sem levar em consideração as leis naturais. No entanto, o clamor que sobe das regiões mais atingidas não parece suficiente para que os representantes das grandes potências tenham a coragem de abraçar medidas concretas. No Brasil, vive-se a contradição de sermos um país emergente, contando entre as futuras potências mundiais, onde tantos padecem de fome. A corrupção, a violência armada, a invasão das drogas, a tentativa de impor uma terceira opção sexual, a educação de pouca qualidade, são alguns dos fatores que minam a força da juventude. Em tudo isto ressoa a voz de Bento : "E que diz?"

            A mudança de época que é a nossa, tem muitos pontos de semelhança com a vivida por Nosso Pai São Bento. O livro dos Diálogos no-lo apresenta inúmeras vezes "sentado à porta" do mosteiro, onde a realidade de seu mundo bate das mais variadas formas. O "estar sentado" é termo técnico que indica a posição do discípulo, daquele que escuta. A escuta, mais do que palavra inicial da Regra Beneditina, é uma atitude constante a ser desenvolvida e cultivada. Podemos nos perguntar : Que impacto nossa realidade tem sobre nós, discípulos na escola legada por São Bento? No contexto atual do mundo, qual a palavra que escutamos com maior insistência? O que e a quem não escutamos? O que você, mergulhado nesta realidade secular, diria a todos com quem divide o dom da existência e que aguardam para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus? (cf. Rm 8,21). Que nos diz Deus hoje? (cf. RB Pról. 10-12).

Todos temos uma especial competência profissional e espiritual, confiada, não só para nós ou para um pequeno grupo, mas para influenciar em uma dimentsão mais ampla. Já o documento Partir de Cristo (5), ao falar da comunhão com os leigos reforça a dimensão eclesial dos diversos carismas de vida consagrada como "suscitados pelo Espírito para o bem de todos". Assim devem estar recolocados no próprio centro da Igreja, para o bem de todo o povo de Deus. Já o sabemos e experimentamos.

A todos urge escutar, e escutar bem, correr, para que as trevas da morte não nos envolvam; correr e agir agora de forma que nos aproveite para sempre (RB Pról. 13-44). Dedicar estes dias à reflexão e à partilha é, com certeza, testemunho da atitude de busca. Importante será reunir a experiência concreta com a tradição espiritual que é a nossa, a fim de que a tradição possa continuar a ser o que seu nome indica : entrega de vida de geração em geração, processo constitutivo da própria Igreja de Cristo, aquele que é a Traditio do Pai. Processo também antropológico, cadeia ininterrupta, que edifica a humanidade em sua história, valores, dignidade, hoje desafiada, como ainda coloca o Documento de Aparecida : "...devemos admitir que esta preciosa tradição começa a diluir-se...esse fenômeno talvez explique um dos fatos mais desconcertantes e originais que vivemos no presente. Nossas tradições culturais já não se transmitem de uma geração à outra com a mesma fluidez que no passado" (cf. DA 39). E o texto aponta com força para o núcleo mais vulnerável e mais profundo de cada cultura, a saber, a experiência religiosa. Este é o contexto do oblato de hoje.

2 - Marcados pelo desejo sincero de procurar a Deus

No capítulo IV do Estatuto dos Oblatos, recentemente aprovado ad experimentum(6), vemos o que se pede do candidato à oblação. Há seis requisitos, dos quais realço o seguinte : desejo sincero e autêntico de procurar a Deus; vocação à espiritualidade beneditina; disposição de vincular-se à comunidade dos oblatos, na atenção para com a missão da comunidade monástica. Certamente muitos destes aspectos já foram abordados a esta altura do congresso. Mas vale sempre repetir, pois cada repetição evidencia a importância do enunciado e traz algum prisma novo.   
   
O primeiro dos critérios fala do desejo de procurar a Deus. Mola mestra da busca de Deus, o desejo aparece na Regra de São Bento doze vezes, da quais, duas citações relacionam-se com a vida eterna. A primeira está no capítulo dos Instrumentos das Boas Obras (RB 4,46), onde também é citada a "cobiça espiritual" e o conjunto dos  versículos em que este instrumento se encontra acena com força para a dimensão escatológica (cf. vv. 44-48). Ele reaparece no capítulo da quaresma (cf. RB 49,7) relacionado com a alegria do desejo espiritual que impulsiona o monge para a Páscoa. Esta espera será preparada por um intenso trabalho de conversão dos desejos bem conhecidos pelos chamados teóricos da vida monástica, especialmente, Evágrio e Cassiano. Bento os conhece e os menciona ao longo de seu texto. Indica continuamente como objetivo da regra a emenda dos vícios já descritos por seus antecessores (cf. RB Pról. 36,47). As outras menções ao desejo, enquanto vício, podem ser resumidas na pessoa dos sarabaítas, para quem a satisfação dos desejos é lei. Encontramos aqui o máximo da perversão do desejo (cf. RB 1,8). Vejam-se ainda as menções aos desejos da carne, especialmente no primeiro grau da humildade (RB 4,59;  7,12; 7,23; 7,24; 7,31). Descritos antes ainda por São Paulo na Carta aos Gálatas, recorda-nos o chamado à liberdade, que pela caridade coloca-nos a serviço uns dos outros.      

Este desejo que move os cenobitas, “que não obedecendo aos próprios desejos e prazeres (...) desejam que um abade lhes presida” (RB 5,12). Paulo convida-nos a deixar-nos conduzir pelo espírito e assim, não satisfazer aos desejos da carne. O Apóstolo que Bento mais cita em sua Regra, por excelência, e que nos oferece a lista dos frutos do espírito, dentre eles, amor, alegria e paz (cf. Gl 5, 13-24). No curso da história da espiritualidade, outros grandes mestres retomarão a força do desejo, agora de forma positiva, sendo que ainda no século VI, Gregório Magno desenvolverá uma verdadeira teologia do desejo. Ao definir a atitude do jovem Bento em Subiaco como aquele cujo desejo era o de agradar somente a Deus, Gregório coloca Bento na mesma linha, também encontrada e por ele evidenciada em uma mulher, Maria Madalena. Na homilia sobre os Evangelhos, São Gergório diz que “a eficácia das boas obras está na perseverança”. Nota como “os desejos fossem aumentando com a espera e fizessem com que chegasse a encontrar (...) pois os desejos santos crescem com a demora, mas, se diminuem com o adiamento, não são desejos autênticos(7). Ambos são assim colocados na corrente da tradição espiritual provada pela experiência.

O desejo é uma categoria do querer, um desejo humano, que ao dirigir-se para Deus, apenas responde ao próprio desejo de Deus que o antecede, como bem expressou o autor Sebastian Moore, citado por William Barry SJ : “O toque criador de Deus que nos deseja no ser, desperta em nós um desejo de ‘algo indizível’, isto é, do Mistério que chamamos Deus(8). Para cada pessoa haverá uma percepção inicial deste desejo de Deus por si, o que chamamos de vocação, experiência fundante, ponto capital da história pessoal de salvação que cada um descobrirá e guardará como a pérola preciosa. Será seu norte, sua bússola contínua, a pedra de toque de sua vida. Uma das mais belas representações plásticas do toque de Deus nos é dada por Michelangelo, nas duas mãos, do Criador e de sua Criatura, no teto da Capela Sistina, no Vaticano.

Todo cristão, diria até, todo e qualquer ser humano, será responsável por perceber em seu ser este toque de Deus que o constitui no ser e abre o diálogo que terá a duração de uma vida inteira. As circunstâncias serão as mais variadas como o são as da História da Salvação e de seus muitos personagens. Veja-se também a História da Igreja, a imensa fileira de homens e mulheres de Deus, dos que, conhecidos ou não, marcam a história com valores evangélicos. Quanto mais sensíveis nos tornarmos à palavra de Deus pronunciada em nosso íntimo, mais perceberemos seus traços, pegadas, nas pessoas e no contexto em que fomos chamados a viver, mesmo caóticos. Tudo se torna revelação para nós, tudo poderá ser decodificado, seja em nossa vida pessoal, seja no que acontece ao nosso redor. Foi no caos do Calvário que o Cristo Jesus disse sua definitiva palavra salvadora. Foi lá que seu desejo de fazer a vontade do Pai se cumpriu. Há muitos Calvários em nosso mundo, como dizia Claudel : “A madeira da qual foi feita a cruz, jamais faltará(9).'

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(1) – DOMEK OSB, Johanna, Conferência, Salvador (2011) pro manuscrito.
(2) – Documento de Aparecida, V CELAM (2007), sempre citado como DA.
(3) – Cf. OGLIARI OSB, Donato, “Además de sobrevivir, cual será el futuro de la presencia monástica em occidente?” in cuadernos Monascitos 177 (2011) 191-199.
(4) – Discurso Inaugural do V CELAM, Papa Beneto XVI.
(5) – Documento promulgado pela Sagrada Congregação para Religiosos e Institutos seculares, 2002.
(6) – Cf. ESTATUTO DOS OBLATOS, Decreto do 58º Capítulo Geral da Congregação Beneditina do Brasil, Rio de Janeiro (2011).
(7) – Cf. Liturgia das Horas Romana, Memória de Santa Maria Madalena, 22 de julho, II    Noturno.
(8) – Cf. BARRY, William SJ, “Allowing the creature to deal with the Creator” – pag. 23
(9) – CLAUDEL, Paul – citação livre



Fonte :
Oblação, Oferta a Deus e aos Irmãos – Conferências do III ENOB
(Encontro Nacional dos Oblatos da Congregação Beneditina do Brasil)
Edições Subiaco – 2012
Editado e impresso pelas  monjas beneditinas do Mosteiro da Santa Cruz – Juiz de Fora – MG - Brasil


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