quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Migrantes : Vítimas e Sujeitos

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

* Artigo do Pe. Alfredo José Gonçalves

‘O tema do título poderia ser formulado da seguinte maneira : os migrantes em geral sofrem a migração ou, ao contrário, são capazes de fazer dela uma força motriz que move a história? Grande parte dos estudiosos que se debruça sobre o fenômeno da mobilidade humana coloca o acento na primeira dessas hipóteses. Segundo suas análises, os migrantes, refugiados, prófugos, exilados, trabalhadores temporários, etc., não passam de vítimas de algum fator externo, com poucas ou nenhuma chance de alternativa. Vítimas de condições sócio-econômicas adversas, do ponto de vista histórico e estrutural; de políticas públicas insuficientes, injustas ou excludentes; de catástrofes naturais que devastam, ao mesmo tempo, seus pertences e a vida de suas famílias; de prenconceitos religiosos, discriminação ou perseguição ideológica, de tensões e conflitos, violência e guerras sangrentas, e assim por diante.
Neste caso, migração converte-se em sinônimo de fuga. Na retaguarda ficaram os destroços de uma existência sacudida violentamente por um terremoto, seja este de natureza sísmica, socio-econômica, política ou bélica. Impossível o retorno, a única alternativa de sobrevivência descortina-se no horizonte do amanhã, embora nebuloso, desconhecido e incerto. A decisão pessoal de migrar encontra resposta num conjunto mais amplo de circunstâncias que envolvem o indivíduo, o grupo familiar ou todo um povo ou nação. Um período mais prolongado de seca, uma enchente ou um conflito armado, por exemplo, podem ser a causa imediata da migração. Marcam a hora da saída. No fundo, porém, a falta de água ou o excesso dela, bem como a luta aberta entre facções inimigas, não fizeram senão agravar causas remotas e há muito em curso, tais como a estrutura agrária e agrícola, o abandono em que vivem os pequenos produtores, a disputa ideológica pelo poder ou a sedução das “luzes da cidade”. Deste modo, fatores bem precisos e visíveis fazem aflorar fatores subterrâneos e invisíveis, determinando o momento da partida.
Nem por isso a segunda alternativa deve ser descartada. Apesar de vítimas de causas remotas e imediatas, os migrantes podem fazer da fuga uma nova busca. De forma consciente ou inconsciente, o próprio fato de migrar, e de fazê-lo em massa, converte-se em protagonismo. Os fluxos migratórios, a exemplo das ondas do mar, sempre desencadeiam energias que mexem com as águas paradas. Os grandes deslocamentos humanos, como as marés, interferem no ritmo dos acontecimentos. Numa palavra, as migrações fazem história, sim, e os migrantes se transformam em sujeitos da mesma! De fato, se, por um lado, a saída em bloco da própria terra questiona a região ou país que não é capaz de oferecer cidadania a seus filhos, por outro, a chegada a um novo lugar obriga a uma tomada de posição diante dos “diferentes e estranhos”. Tanto na origem quanto no destino, os deslocamentos humanos interpelam a sociedade, exigindo mudanças urgentes e necessárias nas relações inter-regionais e/ou internacionais.
A presença do outro – seja ele quem for, venha ele de onde vier, tenha ele os hábitos que tiver, fale ele a língua que falar – sempre perturba e às vezes revolucina a mesmice do cotidiano. De início, porque a identidade de cada pessoa e de cada grupo ou povo só amadurece no confronto com os valores de outra cultura. Mas não é só isso. No caso dos migrantes, além da questão étnica, que nunca deixa de ser relevante, sobrepõe-se a problemática socio-econômica. Ou seja, o outro é também pobre: fugitivo, retirante, exilado, sem nome, sem família, sem lugar, sem papéis e sem pátria. Interpela não somente a minha identidade, mas também o meu bolso, o meu emprego, a minha posição social, o meu filho na escola, a minha paz. Não me deixa indiferente, obriga-me a tomar consciência da situação. Positiva ou negativamente, devo dar uma resposta. Resposta que se torna uma exigência não apenas para cada pessoa, família ou grupo, mas para as associações e organizações de base, movimentos sociais e partidos políticos, instituições e entidades, Igrejas e autoridades em geral.
“Eu era estrangeiro e me receberam em sua casa” ou “eu era estrangeiro e não me receberam em sua casa”, diz o Evangelho (Mt 25, 35.43). Diante do migrante que bate à porta (representando a figura do próprio Jesus), duas posições opostas, contrastantes: enquanto a primeira acolhe o forasteiro, a segunda finge ignorá-lo. Mas a história não há de perdoar aqueles que, nos momentos mais decisivos e trágicos dos embates humanos, permaneceram de braços cruzados, argumentando neutralidade. Há muito o mito da neutralidade está morto e sepultado. Ainda segundo o texto bíblico, a uns o juiz chamará de “benditos de meu Pai”; aos outros, “malditos de meu Pai”. O comportamento para com o outro/estrangeiro torna-se critério para entrar no Reino de Deus. Quando o outro, além de estranho e pobre, é uma vítima caída quase sem vida à beira da estrada, o critério de salvação torna-se igualmente decisivo, como na parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37). Aqui, porém, ainda resta uma oportunidade de conversão e ação solidária: “Vá, e faça a mesma coisa!”, diz Jesus ao doutor da lei.
Justamente essa oportunidade que nos dá a presença do outro pode tornar-se em força motriz da história, a segunda hipótese a que nos referíamos no início. O migrante nunca é somente vítima, mas energia viva que protagoniza mudanças. Pondo-se em marcha, e fazendo-o em forma coletiva, como as águas de um rio em movimento, o migrante inquieta, incomoda e interpela, mas também irriga e fecunda a terra com seus valores culturais e religiosos, seu trabalho, sua inteligência e criatividade. Requer, por isso, uma tomada de posição, seja em termos individuais e familiares, seja em termos sociais e eclesiais, seja ainda em termos de grupo, partido ou governo. Ao movimentar-se, mobiliza igualmente outras forças sociais, quer estas o rechacem quer o acolham. Sua insistência na luta por um futuro mais promissor amplia as janelas do horizonte ou, como dizia Dom J. B. Scalabrini – pai e apóstolo dos migrantes – “alarga o conceito de pátria”, pois esta para o migrante “é a terra que lhe dá o pão”.
A tradição judaico-cristã fez uma experiência de Deus diferente dos demais povos vizinhos. Enquanto para estes Deus era um ente acima e além da história, sentado no trono do templo, sempre sedento de sacrifícios, para os israelitas Javé é aquele que, frente à realidade do povo, “vê a aflição, ouve o clamor, conhece o sofrimento e desce para libertá-lo” (Ex 3,7-10). Um Deus atento, sensível e solidário à condição social de seus filhos e filhas e que, por isso, caminha pelas estradas do êxodo, do deserto e do exílio. Contra os tiranos e tiranias de todos os tempos e lugares, Deus irrompe na história para abrir-lhe novos horizontes, novas alternativas. Deus que nos chama a caminhar, senhor do tempo e da história. De igual forma, os deslocamentos humanos de massa cruzam mares bravios, atravessam desertos inóspitos e rompem muros e fronteiras – descerrando com a energia de águas represadas todas as possibilidades da trajetória humana sobre a face da terra. Força motriz da história, na medida em que, “com a cara e a coragem” lhe desvendam potencialidades ocultas.

Fonte :
* Artigo na íntegra da Web Rádio Migrantes

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