terça-feira, 17 de junho de 2014

Tráfico de pessoas : escravos de ontem e de hoje

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
  
  * Artigo de Lázaro Bustince, Mundo Negro


‘Em 2013, cumpriram-se 125 anos da Campanha Antiescravagista posta em marcha pelo cardeal Lavigerie entre 1888 e 1889. O fundador dos Missionários de África (Padres Brancos) seguiu os passos de outro fundador, Daniel Comboni, que já em 1873 se debateu com aquela praga. Comboni tinha sido testemunha, nas suas intermináveis viagens entre o coração de África e a Europa, das caravanas de escravos que atravessavam o deserto africano e dos barcos que percorriam o Nilo para levar escravos até ao Egipto e ao mar Vermelho, onde eram vendidos para a prostituição e para outros trabalhos. Este negócio encontrava-se nas mãos de mercadores e governantes, que utilizavam os africanos para as suas investidas.

Daniel Comboni, graças ao contacto que manteve – entre outros – com o sultão turco de Constantinopla, conseguiu resultados formidáveis na libertação de escravos, e converteu-se num grande lutador contra a escravatura, que fustigava a África em meados do século XIX. As missões católicas transformaram-se, já na altura, em refúgio para os escravos perseguidos e lugar de luta contra os grupos que traficavam pessoas. Porém, ainda que as grandes potências tenham abolido a escravatura em finais do século XIX, foi necessário retomar essa causa, que o cardeal Lavigerie fez sua.

Foi o próprio Papa Leão XIII quem confiou ao fundador dos Missionários de África a tarefa de acabar com a escravatura em África. Numa audiência com Lavigerie, o papa realçou o trabalho que a Igreja podia fazer em favor dos escravos, ao sublinhar : ‘Já que o continente africano é o cenário principal de tão horroroso comércio e a terra da escravatura, recomendamos a todos os missionários que consagrem todas as suas forças e a sua própria vida a esta obra de redenção.’ O papa pediu, de algum modo, ao próprio Lavigerie que liderasse a causa antiescravagista : ‘Contamos sobretudo com Vossa Eminência para o êxito das difíceis obras e missões de África. Conhecemos o vosso zelo activo e inteligente; sabemos tudo o que haveis realizado até hoje e confiamos que não descansareis antes de ter levado a bom termo as vossas grandes empresas.’ Era o dia 20 de Maio de 1888.


Denúncia e dados

Esta petição do papa impulsionou uma campanha contra a escravatura, que Lavigerie começou um mês mais tarde. A 1 de Julho de 1888, na Igreja de Saint-Sulpice, em Paris, Lavigerie dava já números aterradores de escravos africanos : ‘Sabeis quantos escravos são vendidos pelos traficantes muçulmanos, desde há dez anos, no interior de África? [...] No mínimo, quinhentos mil por ano. Deve permitir-se esse comércio de escravos, que em África origina uma perda anual de pelo menos quinhentas mil pessoas? Compreendem-me? Quinhentos mil escravos vendidos todos os anos nos mercados do interior africano!’ Assim, com estas palavras, arrancou a campanha.

A denúncia de Lavigerie sempre esteve apoiada em dados. Na conferência pronunciada na Igreja de Jesus, dos Jesuítas, em Roma, citou não apenas os relatórios oficiais enviados pelos missionários ou pelos grandes exploradores que percorriam o continente africano, Stanley, Cameron ou Livingstone. Neste caso, também trouxe algumas provas proporcionadas pela Inglaterra, publicadas pelo Foreign Office : ‘Este ano, estima-se que os escravos vendidos, apesar dos tratados e da vigilância do Governo turco, são mais numerosos do que nunca’, denunciou o cardeal, que recordou que já em 1872 Henri Barthe Frere – enviado pelo Foreign Office a Zanzibar para negociar um tratado com o sultão com vista à supressão do tráfico de escravos – informou o Parlamento inglês que o número de negros assassinados ou capturados no interior do Sudão alcançou a cifra de um milhão, ‘e a quantidade de escravos realmente vendidos nos mercados clandestinos ou públicos das províncias africanas, asiáticas e europeias do império turco, [...] duzentos mil’.


Negócio lucrativo

Que significado tem o facto de os três negócios mais lucrativos do mundo continuarem a ser a venda de armas, as drogas e o tráfico de pessoas? Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 2012 havia vinte e um milhões de pessoas vítimas de trabalho forçado em todo o mundo. Para o Global Slavery Index 2013, elaborado pela Fundação Walk Free – que se dedica a identificar e a denunciar as empresas e países responsáveis pelas novas formas de escravatura –, mais de vinte e nove milhões de pessoas vivem cativas, em todo o mundo.

De acordo com este relatório, a Mauritânia é o país com maior prevalência de novas formas de escravatura. Entre os dez piores países do mundo encontramos também o Benim, a Costa do Marfim, a Gâmbia, a Nigéria, a Etiópia, a República Democrática do Congo e o Gabão. O comércio de escravos, tal como o colonialismo e o sistema capitalista, gérmenes das novas formas de escravatura, continuam a oprimir os povos africanos. A venda ilegal de pessoas, sobretudo de crianças e mulheres desamparadas, ou pertencentes a minorias étnicas, é actividade frequente para o trabalho forçado na agricultura e na indústria, na prostituição e na pornografia ou no tráfico de drogas. A ONU adverte que, embora tendo sido abolida a prática da escravatura no Brasil, em 1888, e em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ela continua viva e próspera nos nossos dias, mesmo que com uma grande diferença relativamente ao passado. Antes, afectava principalmente homens jovens, enquanto na actualidade as suas vítimas são maioritariamente crianças e mulheres. Estas escravidões notam-se de forma particular em alguns países africanos como a Mauritânia, o Níger, o Sudão, a República Democrática do Congo, o Benim, o Mali, a Costa do Marfim, a Nigéria, a África do Sul, Angola, Moçambique, Etiópia, Quénia, Malauí ou Uganda. Noutros, como a Líbia, a Somália, a Nigéria, o Mali ou a República Centro-Africana, as invasões de grupos militares de raiz islâmica radical continuam a escravizar regiões inteiras.


As cifras dos escravos

Na Mauritânia, não obstante as leis terem abolido a escravatura em 1960, existem hoje entre oitenta e noventa mil pessoas controladas e tratadas como ‘propriedade’ de outros seres humanos. A maioria dos donos é bérbere e árabe. No vizinho Níger, o total das práticas escravagistas atinge cerca de novecentas mil pessoas, que vivem submetidas a diversos trabalhos forçados. Existe uma lei antiescravagista, mas uma coisa é a lei e outra é fazê-la cumprir diante de um costume tradicional.

Ainda assim, o primeiro lugar nesta história de tráfico e exploração de seres humanos vai para o Sudão, devido, nomeadamente, aos abusos e genocídios do Darfur. As tribos de origem árabe do Norte consideram um direito tradicional capturar e submeter a escravatura os negros africanos do Darfur e do Sudão do Sul. Os chefes dincas falam de aproximadamente cem mil membros da sua tribo sujeitos a servidão forçada pelos árabes do Norte. A organização Christian Solidarity Internacional afirma ter resgatado à volta de setenta e oito mil escravos desde 1995.

Entretanto, em Moçambique, trezentas mulheres saem diariamente do país para se prostituir na África do Sul, segundo a Save the Children. Tanto a Unicef como o Diário de Moçambique denunciaram que algumas seitas religiosas estão envolvidas no tráfico de pessoas no país. Também com destino à prostituição, estima-se que dez mil nigerianas se encontram espalhadas por Itália, Bélgica, Alemanha e Holanda; assim como jovens etíopes e ugandesas, recrutadas pelas máfias que dominam o lucrativo negócio da prostituição para trabalhar no Líbano e no Bahrein.

A Unicef denunciou que, todos os anos, cerca de duzentas mil pessoas de ambos os sexos são tornadas escravas na África Ocidental. Traficantes de pessoas aproveitam-se da situação de pobreza extrema em países como o Benim, o Togo e o Mali para raptar as suas vítimas e levá-las para o Gabão, Costa do Marfim, Camarões ou Nigéria, por preços que oscilam entre trezentos e mil dólares por menino ou menina. Os compradores utilizam as crianças para os serviços domésticos, para mendigar ou trabalhar nas plantações de algodão, de cacau, de café ou chá, ou para se prostituir.

O continente africano converteu-se numa mina que abastece a indústria do sexo na Europa e no Médio Oriente. Segundo a Unicef, trinta e cinco mil menores e mulheres do Ocidente africano entram todos os anos nos circuitos da prostituição. Dentro do continente, a África do Sul revela uma florescente indústria do sexo, por causa do comércio de pessoas procedentes de Angola, Moçambique, Etiópia, Quénia e Malauí. Países como o Quénia e o Senegal contam com um bem organizado turismo sexual, destinado essencialmente a europeus e americanos.


Novos paradigmas

O desaparecimento definitivo da escravatura passa, indubitavelmente, por uma maior responsabilidade dos indivíduos e, por conseguinte, das sociedades, através de uma educação integral. Neste sentido, o Parlamento ugandês acaba de introduzir as disciplinas Educação para a Vida e Educação Social no currículo nacional de educação primária e secundária.

A resposta às estruturas que geram escravatura requer um novo paradigma, em que a dignidade da pessoa humana deve ser o centro das atenções, e em que as estruturas políticas e económicas se rejam por valores éticos, com o objectivo de superar toda a injustiça e violência, a fim de construir uma sociedade na qual reine a solidariedade e a harmonia.

O cardeal Charles Lavigerie, em 1888, deixou-o bem claro : ‘Eu sou pessoa humana e qualquer injustiça contra outros seres humanos me indigna o coração. Continuo a trabalhar para restaurar a honra e a liberdade dos habitantes deste continente.’ Hoje, 125 anos depois, continuamos presos àquelas palavras.’


Fonte   :
* Artigo na íntegra de http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EFAEukuAZpZkllxoFT


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