quarta-feira, 23 de julho de 2014

A vocação nasce do olhar!

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 * Artigo de Padre Manuel João P. Correia,
Missionário Comboniano

Quando nasce uma vocação? Onde situar a sua origem? Qual é o seu primeiríssimo instante? À pergunta poderíamos dar uma resposta de certo modo óbvia: a vocação nasce no coração de Deus! Como e quando, porém, se manifesta ela no coração da pessoa?


‘Viria espontâneo pensar que, dado tratar-se de um ‘chamamento’ (vocação provém do verbo latino vocare, ‘chamar’), ela é semeada pela ‘boca’ de quem chama e brota no ‘ouvido’ de quem escuta. Na origem da vocação estaria pois a ‘palavra’.

Eu acho, porém, que antes da palavra (pronunciada e escutada) está o... olhar! Ou melhor, dois olhares que se cruzam, que comunicam e estabelecem uma relação particular.


A vocação nasce de um olhar

Encontramos no Evangelho numerosos exemplos. Caminhando ao longo do mar da Galileia, Jesus viu Simão Pedro e seu irmão André e chamou-os; mais adiante viu os filhos de Zebedeu, Tiago e João, e chamou-os também (Marcos 1). Passando por ali de novo, no dia seguinte, viu Levi, filho de Alfeu, sentado ao posto da cobrança e disse-lhe : ‘Segue-me’; e este levantou-se e seguiu-o (Marcos 2).

Não sempre este olhar conseguiu o seu intento, como quando Jesus fitou com amor o jovem rico e o convidou a segui-lo. O jovem abaixou os olhos e afastou-se triste, cabisbaixo (Marcos 10). Mas já assim não foi com outro rico, Zaqueu, alcançado também ele pelo olhar de Jesus : ‘Chegando Jesus àquele lugar e levantando os olhos, viu-o e disse-lhe : Zaqueu, desce depressa, porque é preciso que eu fique hoje em tua casa. Ele desceu a toda a pressa e recebeu-o alegremente’ (Lucas 19).

Esta relação entre vocação e visão não aparece só com Jesus que chama, Ele que é a Palavra que se tornou visível (1 João 1). Podemos comprovar que tal sucede também em algumas vocações do Antigo Testamento. Recordemos Moisés, por exemplo : vendo a sarça ardendo, aproximou-se para ver de perto; o Senhor viu Moisés que se aproximava para observar e, do meio da sarça, o chamou : ‘Moisés, Moisés’ (Êxodo 3).

Embora o antigo testamento privilegie a escuta, é dito que no Sinai ‘todo o povo viu as vozes’ (Êxodo 20,18, segundo o texto hebraico). A palavra não se opõe à visão, ela habita também no olhar!


O olhar de Jesus

O Evangelho nada diz sobre o rosto de Jesus, as suas feições, a cor dos seus cabelos ou dos seus olhos, mas fala frequentemente do seu olhar. A sua intimidade passa através do seu modo de olhar. Com efeito, nós falamos e comunicamos com os olhos; até sentimentos e emoções íntimas que, por vezes, a palavra não consegue transmitir. Este olhar de Jesus tinha um efeito singular. Um simples trocar de olhares e tudo muda. Quando Jesus chamou os seus apóstolos, não se diz que tenha dialogado com eles ou tentado persuadi-los. O seu olhar tinha um tal poder de convicção ou de atracção que dispensava palavras ou discursos retóricos. Jesus chamou-os, e eles abandonaram tudo e seguiram-no imediatamente. O seu olhar tocara-lhes o coração e a vida deles mudou para sempre.

O Papa Francisco comentava, há tempos, o impacto deste olhar sobre Mateus. Jesus olha Mateus nos olhos, um cobrador de impostos, um pecador público. O dinheiro é a sua vida, o seu ídolo. Mas agora, afirma o papa, sente ‘no seu coração o olhar de Jesus dirigido a ele’. ‘E aquele olhar envolve-o totalmente, transformou a sua vida. Nós dizemos : converteu-o. Assim que viu aquele olhar, levantou-se e seguiu-o. E isso é verdadeiro : o olhar de Jesus sempre nos levanta. Um olhar que nos leva para cima, que jamais nos abandona. Jamais humilha. Convida a levantar-se. Um olhar que leva a crescer, a ir em frente, que encoraja, porque nos quer bem’ (Santa Marta, 21.9.2013).


Um olhar que interpela

Dir-se-ia que a palavra não basta para suscitar uma vocação. É necessário um olhar que nos ‘interpele’ e dê consistência e força à palavra. Isto tem a sua base antropológica. Nós comunicamos, antes de mais, com o olhar. Uma verdadeira comunicação requer um encontro face a face, um olhar-se nos olhos. Não basta uma simples troca de palavras através do ecrã do iPhone!...

O homem Adão precisa de ter diante de si um interlocutor, alguém que lhe ‘corresponda’ (um ‘face-a-face’, parece indicar o texto de Génesis 2,20) para poder compreender-se a si próprio. O olhar do outro torna-se o espelho em que nos contemplamos. Quando negamos ou suprimimos esse olhar, como no caso de Caim com o seu irmão Abel, o nosso olhar obscurece-se e caminhamos nas trevas.

O nosso olhar é interpelado mas também interpela o mundo e os outros que nos rodeiam. Recebe e exerce uma influência, positiva ou negativa. Um olhar pode fazer desabrochar quanto de melhor existe no coração de quem se olha. Tem o poder de fazer renascer a vida e a esperança, de suscitar potencialidades inimagináveis. Como pode amarfanhar, abater, semear a morte.

Pensemos no olhar enamorado que faz com que a amada ou o amado se sinta uma ‘fada’ ou um ‘príncipe’. Naquele olhar, crescendo, nasce a vocação ao matrimónio. Mas quando aquele olhar começa a redimensionar o outro, vendo-o com olhos que o diminuem até o anular, aí começa a tragédia. Basta que apareça um outro olhar em que uma pessoa se sinta valorizada e estimada para pôr em perigo tal matrimónio.


Um olhar que ama

Ver não é uma tarefa fácil. Hoje vivemos na época do show planetário, com um dilúvio contínuo de imagens que nos submergem com o seu poder de sedução. É preciso aprender a ver, pois podemos ‘ter olhos e não ver’ (como diz Jesus dos seus discípulos, a certa altura). Isto implica uma caminhada espiritual de purificação do nosso olhar para evitar uma visão superficial, utilitária, manipuladora...

A pureza do olhar está ligada à do coração. ‘Os puros de coração verão a Deus’, diz Jesus. Esta pureza é a do Amor. O ‘bem ver’ é uma questão de ‘bom coração’. Citando O Principezinho de Antoine de Saint-Exupéry, ‘Só se vê bem com o coração’. É o coração que dá profundidade ao olhar, porque ‘o essencial é invisível aos olhos’.

Para purificar o nosso coração precisamos de nos ver na pupila dos olhos de Deus. Só eles reflectem a imagem do que somos realmente : ‘Tu és precioso a meus olhos, porque eu te aprecio e te amo’ (Isaías 43,4). Só assim descobrimos a nossa verdadeira identidade e a nossa vocação, no olhar apaixonado do coração de Deus. Por isso os pequenos e os humildes, os pecadores e as prostitutas se sentiam acolhidos e estimados pelo olhar de Cristo. Fora de tal olhar o homem desce à fossa : ‘Não me oculteis a vossa face, para que não me torne como os que descem à sepultura’ (Salmo 142,7).

A vocação nasce e cresce na contemplação. Aliás São Paulo diz que através do olhar nos transformamos em espelho de Cristo. A sua imagem impregna o nosso coração e transforma-nos n’Ele. Grande é o poder desta Imagem! ‘Todos nós, a rosto descoberto, reflectimos como num espelho a glória do Senhor e nos vemos transformados nesta mesma imagem, sempre mais resplandecentes, pela acção do Espírito do Senhor’ (2 Coríntios 3,18).

Olhar e deixar-se olhar por Cristo, é o segredo de uma vocação cristã vivida com paixão. O Papa Francisco, na tal homilia a que acenámos antes, concluía dizendo : ‘Todos nós nos encontraremos diante daquele olhar, aquele olhar maravilhoso. E vamos em frente na vida, na certeza de que Ele nos olha. Mas também Ele nos espera para nos olhar definitivamente. E aquele último olhar de Jesus sobre a nossa vida será para sempre, será eterno. Eu peço a todos esses santos que foram olhados por Jesus, que nos preparemos a deixar-nos olhar na vida, e que nos preparemos também para aquele último... e primeiro olhar de Jesus’.


Um olhar que vê

Um olhar purificado pelo amor, o olhar do coração, vê o mundo e os outros com outros olhos! Não com um olhar indiferente ou concupiscente mas... com olhos de ver!

Eis um bonito exemplo, que tem algo de fantástico e incrível. Trata-se de uma criança, Vivienne Harr, uma menina californiana de apenas 8 anos, que deu início a um projecto com o objectivo de acabar com a exploração infantil.

Um dia a sua mãe fez-lhe ver, com comoção, uma foto de duas crianças nepalesas, de mãos dadas, transportando nas costas enormes pedras. Vivienne ficou profundamente chocada. E decidiu ‘fazer alguma coisa’ para mudar tal situação. A única coisa que sabia e podia fazer era… vender limonada! Com a ajuda da família, Vivienne construiu a sua barraquinha de limonada, com a finalidade de amealhar... 100 000 dólares para financiar a libertação de meninos escravos.

Durante semanas, meses, um ano inteiro... levou adiante o seu propósito. O seu olhar de um coração de criança e a sua tenacidade fizeram o milagre.

O seu projecto tornou-se famoso quando um cronista do The New York Times, tendo recebido uma mensagem de Vivienne, a publicou no Twitter : ‘Olá, sou uma criança de 8 anos e vendo limonada contra a escravidão, todos os dias, até quando alcançar 100 mil dólares.’ Em pouco tempo tão insólita notícia ganhou destaque em várias emissoras e jornais. Viajando com a sua barraquinha, convidada a espectáculos e actividades de beneficência…, o sucesso da iniciativa foi tal que em breve alcançou o objectivo que se propusera.

Quando os pais lhe fizeram notar que agora podia dar-se por satisfeita, ela perguntou : ‘Mas será que acabou a escravidão das crianças?’ ‘É claro que não’, lhe responderam eles. ‘Então também eu não terminei!’ Continuou a sua campanha, e chegou a um milhão de dólares. Hoje a sua limonada artesanal é vendida em muitos lugares do país.

Da venda da limonada Vivienne aprendeu uma coisa : ‘Pensava que o máximo da vida fosse outra coisa, e ao invés sou tão feliz servindo e ajudando : é a coisa mais bela do mundo!’


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EFAupkkpykZcEZjFgJ


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