terça-feira, 28 de março de 2017

Nos tempos do fio de barba

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

O 'fio-de-barba' já não existe como garantia de negócio seguro.
*Artigo de Evaldo D´Assumpção,
médico e escritor


‘Quando era criança, escutava meu pai, vez ou outra, comentando sobre a garantia representada por um fio de barba. Confesso que não entendia aquilo muito bem. Contudo, o passar dos anos foram mostrando-me, de forma bastante prática e por vezes contristante, o significado e a importância do ‘fio de barba’. Fio este que vim a descobrir não ser exatamente da barba, mas quase sempre do bigode. Falemos um pouco de sua origem, para depois comentarmos sua importância, especialmente nos dias atuais.

A palavra ‘bigode’ teria surgido em torno do ano 1498, partindo de uma expressão germânica usada em juramentos : ‘bi Gott’, ou seja : ‘por Deus’. Com ela sedimentava-se um compromisso de forma inviolável.

Retrocedendo o relógio da história, voltamos aos tempos bíblicos, onde a barba era extremamente valorizada pelos judeus, tendo significado religioso profundo. Talvez aí tenha nascido a expressão ‘pelas barbas do profeta’, que possuía sentido de verdade indiscutível, ou compromisso irrevogável. Chegamos à Idade Média, período que abrange os séculos V ao XV, tempo dos cavaleiros andantes, símbolo (ainda que por vezes questionável) de honradez e seriedade. E usualmente, entre eles, entregava-se um fio de barba ao interlocutor, quando um compromisso era assumido. No Brasil do século XIX, selava-se um negócio com um fio de barba, mais especificamente do bigode – que quase todos homens sérios possuíam – colocado dentro de um envelope juntamente com o texto dos compromissos assumidos. Era um ritual ‘bi Gott’, onde Deus servia como testemunha.

Chegamos ao século XXI, onde a longa barba e o bigode deixaram de ser usuais, apesar de que, vivendo numa sociedade líquida, esses adereços faciais estão retornando, geralmente em personagens públicas como jogadores de futebol, cantores, artistas de televisão ou pessoas com aguda necessidade de se mostrar e ser notado. Vez ou outra, encontramos esse ornamento cápilo-facial, em pessoas comuns, não tão exóticas ou notórias. De qualquer forma, não mais como símbolo de austeridade, mas como componente de uma arquitetura capilar chamativa e, por vezes, até mesmo de formidável mau gosto.

Exatamente por isso o ‘fio-de-barba’ já não existe como garantia de negócio seguro, da mesma forma como o seu conjunto já não configura, com robustez, um homem probo.

Adentrando mais profundamente no quesito honestidade, percebemos hoje a inutilidade daquele elemento natural, tanto quanto dos muitos, e cada vez mais sofisticados, documentos utilizados nas mais diferentes transações. Partindo de um simples compromisso de prestação de serviço estabelecido entre cliente e profissional, passando pelo pressuposto dever de cumprimento da palavra empenhada, tanto numa relação interpessoal como na assunção de um cargo público – por nomeação ou por sufrágio – a palavra empenhada vale muito pouco ou quase nada, até quando entes superiores são tomados como testemunha : ‘bi Gott’!

Quantas pessoas amargam a espera, por dias seguidos, de um bombeiro compromissado para corrigir um vazamento em sua residência, mas que nunca aparece; de um pedreiro, um eletricista, um técnico de TV e tantos outros que não se importam em deixar o cliente a ver navios, sem qualquer explicação. Quantas pessoas agendam consulta com um médico – até por questões vitais – e são frustrados por atrasos ou até ausências (obviamente algumas inteiramente justificadas pela natureza do seu serviço, mas outras, por razões bastante prosaicas...). Quantas outras entregam para um advogado uma ação da qual dependem para sua própria sobrevivência, e o causídico que os atendeu tão prontamente na contratação dos seus serviços, tornam-se inalcançáveis, não dão qualquer retorno, frustram totalmente aquele que nele confiou. Li certa vez que cerca de 70% das queixas na OAB, contra advogados, são relacionadas à total falta de atenção desses profissionais.

Mutatis mutandis, o mesmo ocorre em praticamente todas as atividades liberais, assim como no comércio, na indústria, etc. e de modo ainda mais absurdo, nos serviços públicos.

Entrando na área política, o espaço desse artigo se torna absolutamente insuficiente para as necessárias citações. Recorro então ao noticiário dos jornais, rádios e TVs para um mamútico exemplo da total inutilidade do fio-de-barba nesse mundo promíscuo de empresários e políticos. Nele, nem um bigode do tamanho das madeixas de Rapunzel, conseguiria superar a hipocrisia e as mentiras dos milionários e bilionários que hoje, por graça especial de Moros, Janots, Federais e outros poucos mosqueteiros, disfrutam do ‘conforto’ das celas a que condenaram, com seus conchavos e falsetas, à fome, à miséria, às drogas e ao crime, tantos cidadãos brasileiros, muitos, quem sabe, até mesmo seus eleitores...’


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