segunda-feira, 26 de junho de 2017

No areal... o céu brilha com estrelas

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo do Padre Daniel R. Nardin,
Missionário Comboniano


‘Escrevo de Trujillo, no Peru. Não tenho ouro nem prata, apenas o choro de uma criança recém-nascida, ou o olhar sereno de quem acredita na vida, ou o entusiasmo da jovem que é confirmada e quer ser catequista, porque ama a Deus no seu próximo, ou a misericórdia infinita de D. Elena, que, apesar de ter uma família numerosa, arranja sempre espaço para acomodar quem chega cheio de problemas e tristezas.


O deserto florescerá

Encontrar vida nos recantos mais impensáveis do bairro El Porvenir em Trujillo, onde reina o mercado da vida e da morte, é apenas uma questão de estatísticas, em que o crime e a violência parecem ser os únicos protagonistas, uma vez que o que fascina é somente o território dominado, o dinheiro movimentado, o poder que um tem sobre a vida e a morte, e onde quem não tem nada para fazer e está num canto sem dinheiro acaba alistado e treinado num ou noutro bando de criminosos.

Encontrar perspectivas nesta terra é sempre um esforço enorme. Mas mesmo o deserto floresce, e eu sou testemunha. Basta o orvalho, uma chuva passageira, e também o deserto de El Porvenir fica verde, brota.

Sim, também estes areais, onde as balas atravessam entre o ombro e pescoço e o ferido não grita : abre desmedidamente os olhos, agarra-se à garganta e expira... onde há iniciação na atividade do homicídio, do ataque com arma branca, depois de ter vitoriosamente adestrado nas etapas básicas do armazenamento das armas da organização, do agir como observador, do espiar as vítimas e praticar pequenos furtos e assaltos. O móbil é sempre o dinheiro. O que interessa é exibir riqueza.

Mas também El Porvenir refloresce continuamente. Existem rasgos de vida, tais como a escrita trêmula da criança que começa a aprender a lidar com o lápis e tenta desenhar redondamente as suas letras imitando os adultos; os sussurros das senhoras que aprendem a cozinhar, para ultrapassar a pobreza, dar vigor à vida diária da família, procurar alternativas para os seus filhos; os doentes na solidão e no desespero que aprendem a sorrir e te abraçam e dizem obrigado…

A estrela polar que me guia neste momento é Maria Estela, com os seus olhos apagados pela cegueira no final da sua vida, com tanto sofrimento e tanta fadiga quanto experiência, mas também com tanta vitalidade e serenidade nesta hora suprema.


Companheiros de viagem

Nestes 32 anos que levo no Peru, descortinei as experiências de vida mais belas e as mais absurdas, as mais complicadas e as mais doces, em que a beleza, a fantasia e o amor se misturam com a violência, o desprezo e o delírio. E tudo nos apanha sem que o procuremos, sem programação e com todo o seu realismo. Retira-nos o tapete, inquieta-nos e provoca em nós algum tipo de reação.

Vejo-me no meio de lutas em que as facas passam de mão para mão com a velocidade de um raio; sou testemunha de homicídios quando vou em transportes públicos para chegar à paróquia; carrego nos sapatos a areia que piso e encontro-a também no cálice da Eucaristia nos dias em que há vento; recebo o abraço de uma avozinha que, com 96 anos, enfrenta toda a sua família que aderiu a um grupo religioso e lhes exige que chamem o padre católico, porque quer confessar-se e receber os santos óleos. Recordo os seus olhinhos quase cegos, a sua voz sumida, a força com que me agarrou a estola, as suas palavras de despedida para agradecer-me e, por fim, o seu encontrar-se no abraço de Deus. Tudo isso me confunde e complica a vida, me entusiasma e me obriga a estar com eles.

O Papa Francisco ensina-nos que acompanhar significa estar com o próximo continuamente. Quem acompanha dá sempre o primeiro passo, toma a iniciativa sem medo, aproxima-se de todos, encontra, chega primeiro às encruzilhadas da vida, põe-se de joelhos, encurta distâncias, toca a carne dorida do povo, está permanentemente disponível para o outro e celebra cada pequena vitória, cada passo em frente, ainda que incerto.

Acompanhar é desejar um «bom-dia» a quem encontramos na rua; é oferecer um sorriso a quem vem ter conosco; é querer saber da saúde do amigo: «Como está? Melhor?», é dar um aperto de mão ou um afago; é fazer o impossível pelo outro e, quando não há mais nada a fazer porque a vida se escapa, faltam as forças, a respiração se torna pesada, os medicamentos já não ajudam... é estar ao lado sem desistir, acariciar, abraçar, beijar, dizer : «Amo-te, não tenhas medo. Eu estou aqui contigo. Sê forte, como foste para Isaías

Estou aqui, entre e com estas pessoas, com as crianças de 5 anos que aprendem a escrever e a sua ardósia é o asfalto da estrada, e o giz é um pequeno pedaço de gesso encontrado na escola. Estou próximo de Emiliano, que já sabe ler. E de Jhonel, o terrível, que aprendeu a escrever o seu nome e agora escreve quase todas as palavras, embora algumas com erros ou de pernas para o ar, e se ri às gargalhadas sempre que desenha um nome, uma palavra, unindo as letras e o seu coração na alegria.

Estou aqui com Maria Paola, enfermeira, acompanhando-a, já que, há dias, num acidente com um carro e um caminhão, os seus dois filhos, de 13 e 17 anos, morreram, enquanto a terceira, a mais nova dos três, está em coma. A única que se salvou foi ela… porque não estava no carro. «Será que Deus me castigou?», continua a perguntar-me.

E José, que vai casar ao fim de um longo caminho de fé, que, finalmente, se encheu de luz, depois de ele dizer o seu «sim» àquela jovem magra, que parece mais jovem do que é. Já se sabe, o amor cresce despercebido.


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Igreja em saída

Às vezes, a abundância de trabalho obriga-me a olhar a realidade que me rodeia com os olhos bem abertos. Então, vivo do que vejo, sinto-me, finalmente, «Igreja em saída» e, sobretudo, com «cheiro a ovelha», tratando, por um lado, de afugentar os lobos e procurando orientar este pequeno rebanho (as outras 99 ovelhas estão fora), e estar atento aos que vêm pedir ajuda e compaixão, por outro. É neste espírito que me envolvo nas situações mais bizarras e disparatadas, desejando abrir caminhos no deserto para Deus que se faz próximo do seu povo.

Guardo a história de um rapazinho da periferia mais extrema – dos últimos dos últimos –, onde a vida não vale nada, que me remexeu o coração. Há muito tempo, ele vinha à missa e à catequese com os outros. Até que deixou de comparecer. «Não o deixam vir», diziam-me os seus colegas. E ele é um rapaz inteligente, vivaço. Na sua ausência, por vezes, víamo-lo rondando o local da reunião com a desculpa de comprar algo. Um dia, voltou e participou na missa com o seu pequeno grupo. E contou-nos a novidade : tinha sido batizado numa lagoa das proximidades como membro de um pequeno grupo evangélico. Mas disse : «Aqui está-se melhor.» Senti compaixão... e vontade de me comprometer mais. Situações como esta são muito delicadas, e devem ser encaradas com sabedoria.

Para nós, comunidade de missionários combonianos, e para a comunidade cristã, estamos a entrar numa época de sacramentos. Haverá grandes celebrações, como as primeiras comunhões das crianças – não sabemos se bem maduras, mas, sem dúvida, ansiosas por encontrar-se com Jesus, pão de vida e caminho de esperança, ou o crisma de alguns jovens, que não são numerosos, mas que concordaram com ser confirmados na fé de Jesus.

E estamos a encerrar o ano letivo, mas a abrir os ATL de Verão para crianças, jovens e adultos, a fim de não os deixar nas garras dos lobos, ou polvos, porque, sempre que ficam nas ruas, entregando-se ao ócio ou aos vícios, acabam num gangue. E acompanhamos as crianças da escola especial e aos seus papás, que os querem protagonistas das suas vidas.

O meu coração ferve, queima. Mas não pode ser de outra maneira, com todo este mundo no areal à frente dos olhos.

E as estrelas? Elas sorriem no céu de Trujillo e piscam o olho à vida.’

           
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