sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Céu, inferno e purgatório à luz do mistério pascal

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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Dante e seus Poemas por Domenico di Michelino (1460)

*Artigo de Geraldo De Mori, SJ


‘A destinação final do ser humano é vista de diversas maneiras pelas religiões e pelas ciências. O cristianismo professa sua esperança na ressurreição dos mortos, baseado na proclamação da ressurreição de Jesus Cristo. Muitas igrejas cristãs, ao rezarem a cada domingo o símbolo dos Apóstolos ou símbolo de Niceia/Constantinopla, dizem crer na ‘ressurreição dos mortos e na vida eterna’ ou dizer crer ‘na ressurreição dos mortos e na vida do mundo que há de vir’. Baseada nessas afirmações do símbolo da fé, a teologia cristã elaborou ao longo dos séculos uma reflexão que deu origem, já nas Sumas medievais, aos artigos dedicados aos ‘novíssimos’ (as coisas novas), que na teologia atual são estudados no tratado de escatologia (as coisas últimas e definitivas).

A sistematização do que tradicionalmente foi chamado de ‘novíssimos’ é o resultado do encontro entre várias ‘representações da vida futura’, muitas delas presentes na Bíblia e outras oriundas das tradições religiosas e filosóficas de outras culturas, dentre as quais a grega. Nos textos mais antigos da Bíblia, a vida era o mais importante. Para realizar-se plenamente, o ser humano tinha que ter saúde, viver uma vida longa, ser bem sucedido do ponto de vista material, ter filhos e ver ‘os filhos dos filhos’ (Sl 128,6). Não havia esperança de uma vida após a morte, embora o Israel antigo não conhecesse a ideia de que com a morte tudo desapareceria. Para eles, os mortos iam para o xeol (Jó 14,13; Sl 6,5; 86,13;139,8; Pr 30,16; Ecl 9,4-6;.10), que era o reino das sombras, mas sobre o qual Deus reinava. Não existia a ideia de que o xeol fosse o domínio de uma força maligna, identificada em outras religiões com o diabo. Tampouco existia a ideia de que havia um paraíso para onde iriam os justos/bons. Deus mostrava, porém, misericórdia para com os justos (até a milésima geração : cf. Dt 5,10) e retribuía com o castigo os que praticavam o mal (até a terceira geração o mal : cf. Dt 5,9).

A crença de que haveria uma retribuição após a morte, com um lugar para os bons e outro para os maus, começou a surgir na literatura apocalíptica judaica, que é representada pelo livro de Daniel e por vários apócrifos (Esdras, Enoque etc.). Em parte, isso foi determinado pela morte dos justos e a constatação de que no mundo nem sempre eles eram devidamente retribuídos e os maus devidamente castigados. O capítulo 12 de Daniel é emblemático a esse respeito, pois fala que os mortos ‘acordarão’, alguns para a ‘vida eterna’ e outros para o ‘desprezo eterno’ (v. 2). O capítulo 7 do segundo livro dos Macabeus também atesta a fé na ressurreição (v. 28-29).

O Novo Testamento mostra a duas perspectivas acima elencadas : a dos saduceus, para os quais não haveria ressurreição, e a dos fariseus, que nela criam (Mt 22,23-33). Aparece também a crença de um lugar para os bons (o ‘seio de Abraão’, em Lc 16,22) e um lugar para os maus (o ‘inferno’, em Lc 16,23). O lugar para os maus é denominado também ‘geena’, e ganha traços terríveis nos discursos de Jesus : lugar onde haveria ‘choro e ranger de dentes’, com ‘vermes’, ‘corrupção’ (Mt 5,22.30; 10,28; 18,9; 23,15.33 etc.). O termo ‘paraíso’ ocorre uma única vez na boca de Jesus, quando ele o promete ao bom ladrão arrependido na cruz (Lc 23,43). Jesus fala, porém, do reino de Deus como algo futuro, lugar de festa e banquete (Mt 22,1-14; Lc 14,15-24). Além da ideia de ‘lugares’ para onde iriam os mortos, os textos do Novo Testamento falam ainda que Jesus ressuscitou dos mortos e apareceu a vários discípulos (1Cor 15,5s), e fundamentam nossa ressurreição na sua ressurreição, com longa reflexão sobre como ela seria (1Cor 15,12-58). Os principais textos que falam de nossa ressurreição a associam à segunda vinda de Cristo, o ‘dia do Senhor’ (1Ts 4,13-18; 1Cor 15,23-27).

Com base nesses textos e nessas ‘representações’ da vida futura, a pregação cristã e a teologia foram elaborando, em diálogo com a filosofia grega, o que, na Idade Média, foi chamado de novíssimos : céu e inferno. Em parte, essa reflexão constituiu-se como ‘topografia do além’, determinada pelas categorias a partir das quais conhecemos : espaço e tempo. O ‘mundo futuro’ tornou-se uma espécie de reprodução, mais perfeita e plena, chamada ‘céu’ ou ‘paraíso’, ou imperfeita e falha, denominada ‘inferno’. Além desses dois ‘lugares’, pouco a pouco foi surgindo um terceiro, o ‘purgatório’. Em parte, isso se deve ao dualismo antropológico grego, que via o ser humano como a conjunção de corpo (perecível) e alma (imperecível), e em parte, ao ‘atraso da parusia’, que levantava a questão do que acontecia com os fiéis que haviam dado testemunho do Cristo antes de sua segunda vinda. A crença de que no dia juízo tudo deveria ser ‘revelado’, passando pelo fogo (1Cor 3,13-15), e a prática da oração pelos ‘fiéis defuntos’, levou à elaboração da teologia do purgatório. Com a Divina comédia, de Dante, na Idade Média, e as pregações da Igreja visando à conversão, essa representação do além se popularizou, tendo ainda grande importância na linguagem.

A nova visão do mundo, dada pelas descobertas das ciências modernas, mostrou, porém, que não se pode mais pensar a esperança na ressurreição ou a ‘vida futura’ ou no ‘além’, com as categorias do nosso mundo (espaço e tempo). É difícil pensar fora do tempo e do espaço, mas isso não significa que não o possamos fazer. O único lugar para pensar isso é o próprio mistério pascal de Cristo, sua cruz e ressurreição.

Como fazê-lo? Vendo como Jesus morreu. Podemos dizer que na Cruz, Jesus nos diz primeiro o que é o inferno. Ao clamar em voz forte ‘meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?’ (Mt 27,46), ele nos diz que o inferno é a separação radical da fonte de sentido, que é o Pai, o não sentir-se amparado por ele, ver a vida aniquilar-se no nada. Essa frustração radical e total da existência é a não realização da vocação à filiação, inscrita na criação do ser humano à imagem e semelhança de Deus. Alguns autores pensam que Jesus fez essa experiência para que ninguém a fizesse depois dele. Outros dizem que a possibilidade do inferno é a condição de possibilidade da liberdade, ou seja, Deus nos cria para sermos filhos (as), mas não nos obriga à filiação. Por isso, a possibilidade da frustração radical da existência, que é viver fora do sentido, que é Deus. De qualquer forma, a cruz é a revelação do mal por excelência, presente na condenação do justo, e a revelação da vitória sobre este mal, pois é a expressão do dom de si de Jesus por amor até o fim, em fidelidade ao Pai. Essa fidelidade pode ser vista também como confiança, e aí aparece a experiência da vitória sobre a frustração. Nas palavras : ‘Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito’ (Lc 23,46), Jesus mantém-se fiel àquilo que ele acreditou durante toda a vida, na ‘noite mais escura’ dos sentidos, pois aí Deus parecia ter-se ausentado. Nesta fé-confiança encontra-se o que poderíamos chamar ‘céu’, pois o céu é encontrar sentido e sentido último e definitivo para a existência, mesmo quando ela parece não ter sentido.

Perseverar na apelação filial, eis o caminho revelado por Jesus diante do nada da morte injusta que lhe foi impingida. A passagem pelo abandono pode ser vista como ‘purgatório’, ou seja, a prova final pela qual passou Jesus, e pela qual todos passamos. No fundo, diante do ‘nada’ para o qual a morte parece conduzir, e que pode ser identificado com o ‘inferno’, a fé, feita de provação, de ‘purgatório’, nos diz que a perseverança na fé-confiança é possível, e nos leva ao ‘céu’. Toda essa experiência da cruz não é feita apenas entre Jesus e o Pai. O Espírito Santo aí está, levando Jesus ao supremo despojamento, à ‘noite escura da alma’ do abandono, do inferno, arrancando-o, pelo purgatório, para o céu da fé-confiança. Nossa morte, na perspectiva cristã, também é chamada a ser vivida na perspectiva aberta por Jesus. Pela fé-confiança, passando ‘pelo vale tenebroso do abandono’, somos chamados a abandonar-nos nos braços do Pai, como o fez Jesus, movidos pela força do Espírito Santo.’


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